terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Conveção de Condomínio

Da convenção de condomínio:

Capítulo II: Das Disposições Gerais
Art. 2º São deveres dos condôminos e moradores:
II - Evitar o ingresso no edifício de pessoas de maus costumes, vida desregrada, ou moral duvidosa.

Engraçado como o espírito do pequeno burguês - ou simplesmente do burguês, dependendo do caso - se manifesta em um documento tão singelo quanto uma convenção de condomínio. Não de forma explícita, claro. Até o pequeno burguês se assustaria caso percebesse os absurdos a que se condiciona. Ainda assim, seu espírito está lá, escondido entre capítulos, artigos e disposições. O pequeno burguês não nota, mas em cada uma de suas palavras reside todo o consevadorismo que o sustenta. Esse conservadorismo o pequeno burguês mantém com afinco. Não quer ver seus valores contaminados com aqueles que imperam fora de seu apartamento. Por isso se afasta da realidade, afastando também todos os que poderiam fazê-lo ver que há algo além do quarto em que vivem. A esses indivíduos o pequeno burguês dá o nome de "pessoas de maus costumes, vida desregrada, ou moral duvidosa". Mas qual moral, se não duvidosa, levaria a um texto assim?

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Pregações

"Com licença, o senhor gosta de ler?" A pergunta me pegou de surpresa. Nem minha cara de cu usual inibira o sujeito de se aproximar. Qualquer que fosse a reposta, contudo, sabia que seria seguida de algum tipo tipo de oferta esdrúxula. Encarei o sujeito por um segundo: calças pretas, sapatos pretos, e camisa branca de mangas curtas, abotoada até a gola. Crente ou vendedor de enciclopédias. Como enciclopédias estão em baixa, apostei na primeira opção. Não respondi. "O senhor já leu a Bíblia?" Batata, era crente mesmo. "Não, não li." "Entendo. Muitas pessoas têm dificuldade em ler. Talvez o senhor gostasse de começar por algo mais fácil. Tenho aqui comigo algumas palavras de conforto..." Algo mais fácil. Na certa leio por semana mais do que o cara já leu em toda a vida. "Olha, meu amigo, não estou interessado". Tentei ser cordial, por pior que fosse. Não nutro o menor respeito por qualquer tipo de crente. "Tem certeza, senhor? As palavras vêm acompanhadas de ilustrações e..." Acompanhadas de ilustrações. Naquele momento o sujeito pôs minha paciência em xeque. "Cara, não quero. Não acredito nessas merdas." Ele me olhou estarrecido. Na certa não escutava "merdas" todos os dias. Balançou a cabeça e foi embora. Fiquei tranqüilo, na minha.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Villaró

Há algumas semanas, uns amigos me chamaram pra comer em um destes restaurantes chiques da cidade. Eles tinham descolado um jantar por um precinho camarada em um site de compras coletivas. Esses sites funcionam de uma forma bem simples: a loja oferece um serviço por um valor reduzido desde que um número específico de pessoas comprometa-se a comprá-lo. Quem compra imprime um voucher e apresenta no estabelecimento. O rango, portanto, sairia praticamente de graça. Aceitei o convite, ainda que com um pé atrás. Nunca me sinto à vontade em lugares da moda e sabia que o tal restaurante estaria cheio de narizes empinados. A companhia de meus amigos e a perspectiva de fazer um programa diferente, contudo, valeriam o esforço.

Cheguei ao local combinado pelas 21h30, levemente atrasado graças a uma porta que teimava em ficar trancada. Era uma quinta-feira e o tal parrilla lounge estava lotado, justamente como imaginei que estaria. Parrilla, para quem não sabe, nada mais é do que o churrasco uruguaio. Lounge é um tipo de música que mistura jazz, bossa-nova, eletrônica e o que mais o disco-jóquei quiser. Qual a moral de se comer churrasco escutando este tipo de som eu não descobri. Pretensão, talvez? Combinaria com as fotos de Punta del Este penduradas nas paredes do lugar. Aliás, casa inteira queria passar ao comensal a impressão de que ele estava de fato em Punta.

Passado o choque - afinal, fora transportado para o Uruguai! - pus-me a procurar meus camaradas. Logo de entrada percebi que uma moça me fitava com uma cara-de-o-que-tu-ta-fazendo-aqui,-cabeludo. Ignorei-a sem dó e me dirigi à mesa de meus comparsas. Eles bebericavam uma água e conversavam animadamente. Assim que sentei, um garçom trouxe o cardápio. Aproveitei para indagá-lo sobre o funcionamento dos tíquetes promocionais. Ao ouvir a palavra tíquete, contudo, o sujeito prontamente foi atender o casal da mesa ao lado. Fiquei, literalmente, falando sozinho. Surpreso com a atitude do garçom, fiz sinal para que um outro viesse até mim. Deixei o voucher sobre a mesa enquanto o moço se aproximava. Ele foi chegando devagar e, ao perceber a existência do cupom, imediatamente voltou-se para uma outra mesa. Fiquei mais uma vez no vácuo.

Àquela altura, já estava enraivecido. Meus amigos, por outro lado, pareciam bem mais tranquilos. Foi aí que eles, experientes com promoções, disseram-me que o tratamento dispensado para quem usa tíquetes geralmente é assim. O negócio era ser paciente e rir com situação. Fiquei incrédulo. Era a primeira vez que usava aquele tipo de serviço, e em minha cabeça não fazia sentido algum que um restaurante fizesse tamanha propaganda contra si.

Após algumas tentativas frustradas, consegui chamar a atenção de um terceiro garçom. Ele anotou nossos pedidos com ar rabugento, recolheu os cupons impacientemente e saiu. A comida foi servida mais ou menos meia hora depois. Qual não foi nossa surpresa ao perceber que os pratos não batiam com a descrição do menu? O "Risoto de Manjericão com Castanhas do Caju" levava manjericão e castanhas só no nome. A noite se tornara uma bela palhaçada. De que adianta fazer promoção se na hora o cliente se ferra? Meu bom senso diz que cliente é cliente, seja com tíquete, seja sem. A verdade é que após verem os pratos até meus amigos, que estavam levando tudo na esportiva, se chatearam. Tanto que nem nos demos o trabalho de reclamar. Comemos nosso risotto insosso, pagamos a conta e demos no pé. Na próxima, parrilla lounge nem pensar.